O ataque ao pensamento

August Rodin, Le Penseur. 1928

Em determinados momentos da vida ouvimos ideias que, talvez por irem ao encontro de uma questão ou conflito interno presente nesse momento, nunca mais esquecemos. Um dia ouvi dizer, por alguém do mundo da ciência, não sei precisar quando nem por quem, que quanto mais tempo levamos a resolver um problema (seja de matemática, seja da vida), mais sinapses nervosas criamos no cérebro, e por isso mais inteligentes ficamos. Foi provavelmente num momento em que eu estaria a sentir dificuldade em encontrar a solução para alguma questão da vida, e esta ideia tranquilizou-me. 

Agora estou preocupada com a situação inversa. 

Estão a surgir, a um ritmo alucinante, ferramentas tecnológicas de Inteligência Artificial, como o recente ChatGPT, que ameaçam esbater a linha entre o facilitar da vida e a substituição do pensamento. Para além da “Fast-food”, temos agora “fast-thinkers”, ilusoriamente pensantes, que correm o risco de serem utilizadas como varinhas mágicas que transformam problemas em soluções instantâneas, tornando-se uma ameaça à saúde da inteligência humana.

Já dizia Bion que é necessária alguma dor mental para haver transformação psíquica, algum desconforto para criar motivação para o esforço de uma mudança de lugar. Da mesma forma, é necessário o confronto com tarefas intelectuais com alguma dificuldade para estimular o esforço intelectual e a criatividade que alimenta o cérebro. 

É necessário que as crianças aprendam a fazer contas antes de usarem máquinas calculadoras, e quando, com esforço, começam a juntar as primeiras letras para formar palavras, e as primeiras palavras para formar frases, tendo em simultâneo de decifrar o significado das mesmas, os seus pequenos cérebros sofrem uma explosão sináptica e reconfiguração cerebral. 

Se andássemos sempre de carro, os nossos músculos atrofiariam. Agora, andamos todos a fazer jogging, mas corremos o risco de atrofiar os músculos cerebrais.

Se as respostas imediatas do google, apesar de possibilitarem um maior acesso universal à informação, podem tornar as mentes mais jovens, habituadas a respostas instantâneas, preguiçosas, com o Chat GPT o perigo parece aumentar. Para além poder falsear as respostas (utilizando conteúdos falsos na Web), corre o risco de matar o pensamento (critico e criativo) humano, criando ao mesmo tempo, a perigosa ilusão de estar a obter uma verdade inquestionável sobre a realidade. 

O chatGPT é uma nova ferramenta da Inteligência Artificial generativa que não faz mais do que utilizar a maioria dos dados guardados na Web (em linguagem) para os correlacionar de forma extraordinária, conseguindo assim aparentemente dar respostas inteligentes às nossas questões. 

Para dar uma imagem quotidiana, pensemos nos momentos em que estamos a ler um livro numa língua estrangeira: por vezes deparamos com uma palavra cujo significado desconhecemos, e para evitar o trabalho de consultar o dicionário, conseguimos eventualmente traduzi-la, com alguma probabilidade, relacionando as palavras dentro da mesma frase. Ora é isso que o ChatGPT faz: adivinhar. Mergulha no grande universo de conteúdos da Web e “adivinha” qual a associação entre as ideias que introduzimos inicialmente. Portanto, pegando na analogia anterior, ele traduz a palavra (ideia) que liga as restantes palavras da frase (questões colocadas) mas, ao contrário do que acontece com o dicionário, não explica o seu significado, ou seja, não representa.

Ora, o pensamento é representação. A vida humana diferencia-se da restante vida animal pela capacidade de atribuir significado ao mundo (externo e interno). A palavra é, por excelência, representação, e pode ser diferenciada em signo e símbolo: o signo varia de língua para língua, mas o significado é universal. Já no mundo psíquico e emocional, o significado atribuído à realidade interna, é individual, subjetivo, e em parte inconsciente, e é este decifrar de significados uma das principais tarefas da clínica psicanalítica.

O ChatGPT mergulha e vasculha no mundo dos signos, mas não cria significados. Correlaciona dados, mas não mostra a natureza da relação entre eles. Para dar uma analogia comum: constata-se que existe uma correlação entre pele clara e sensibilidade ao sol, e sabemos que o significado dessa associação é uma relação de causalidade (a pele clara causa sensibilidade ao sol). Mas também poderá haver uma correlação entre pele clara e riqueza, e aqui não existe uma relação direta de causalidade, mas é uma associação arbitrária porque outras variáveis escondidas (variáveis mediadoras), como por exemplo, o racismo, estão a causar esta associação (as pessoas de pele clara são mais ricas do que as de pele escura porque os preconceitos sociais racistas relativamente às pessoas negras, diminui a possibilidade destas de criar riqueza).

O ChatGPT é assim uma espécie de “Bimby de ideias”: mistura as ideias que lá colocamos, mas não cria pensamentos novos, e sobretudo não os questiona. E como não tem a temporalidade humana que nos faz olhar para trás e aprender com os erros (se eu voltasse atrás faria de forma diferente...), também não transforma.

Quando o ChatGPT foi lançado, alguns especialistas em IA ficaram assustados com receio de que esta nova ferramenta “inteligente”, com uma capacidade ultrarrápida de “aprendizagem”, viesse substituir a inteligência humana, e no futuro quiçá dominá-la... Entre outros, assim falou o Prof. Doutor Arlindo Oliveira do Instituto Superior Técnico, numa conferência organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian. 

Questionei-me: de que inteligência falamos? A inteligência vai muito para além da associação de ideias: o pensamento humano é esta capacidade de construir significados, motivado pela “urgência emocional” de compreender a realidade (externa ou interna). Como constatou António Damásio nas suas investigações com doentes que haviam sofrido danos cerebrais, o ser humano pensa com os afetos, e os afetos são mapeados no corpo. Logo (pensamento lógico), não podemos pensar sem corpo.

Mas podemos imaginar outra forma de inteligência, dirão...

Não me parece que o ser humano corra o risco de se tornar um robô nas mãos desta máquina, pelo contrário, os especialistas referem que esta máquina é que deverá ser um robô capaz de ser utilizado pelos humanos para algumas tarefas mais rotineiras, deixando a mente humana mais livre para pensar, uma espécie de “escravos” da Grécia Antiga que permitiam aos filósofos pensarem. 

Em oposição a esta utilização humanista, estaria uma tentativa de domínio e ganância através da manipulação/falsear da realidade, ao serviço da maldade e omnipotência humanas, risco relativamente ao qual parece haver consenso...

Mas talvez o maior risco, e mais difícil de legislar, será o da estupidez humana, e o atrofiar da inteligência das novas gerações... 

Uma possível autodestruição, à semelhança das alterações climáticas: o homem que, com a sua ganância, mata o planeta-sustento, poderá também matar a inteligência-sobrevivência, tornando as mentes preguiçosos, os cérebros mais jovens enfraquecidos?

A Bimby é frequentemente usada por quem não sabe cozinhar, e esses nunca sentirão necessidade de aprender. Mas parece que quem melhor a utiliza são os exímios cozinheiros, que fazem dela um auxiliar para as suas criações. Espero que também agora, não percamos o desejo de nos mantermos cozinheiros de pensamentos.

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