O Tempo

"Relógio Macio no Momento da Primeira Explosão" ( Salvador Dali, 1954)

Quando nos esquecíamos da data corrente: isso, sim, eram tempos.

Isso sim, era tempo.

Quando os sonhos eram um ir e um vir do inferno ao céu:

Isso, sim, eram tempos. 
— Peter Handke

A experiência mais agradável que tive estas férias foi a paragem do tempo. Mais do que os mergulhos, o calor, a mudança de rotinas, e o encantamento com os novos lugares, foi sentir que o tempo veloz que se/nos atropela tinha-se transformado num tempo lento, ao ritmo do corpo, que permite uma escuta interna e ver as pessoas com quem estamos todos os dias... 

O tempo deixara de correr para discorrer...

Vivemos num tempo tão rápido, onde acontecimentos, informação e novos estímulos se sucedem tão velozmente que não dá tempo para elaborar e integrar tudo o que acontece à nossa volta. 

A Internet trouxe sem dúvida inúmeros benefícios, em particular a velocidade, difusão e democratização da informação, mas justamente por isso esta “Era da Informação”, parece-me, atropelou o pensamento.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han atribui a aceleração da vida ao mundo em rede: “A aceleração da qual tanto se fala hoje em dia não é um processo primário que acaba por comportar diferentes mudanças no mundo da vida, mas um sintoma, um processo secundário – quer dizer, uma consequência de um tempo que ficou insustentado, atomizado, sem qualquer tipo de gravitação.” 

O mundo digital cria um espaço instantâneo, onde não se caminha, não se vai de um lugar ao outro, a informação surge de forma descontinuada, impossibilitando a construção de uma narrativa: “O espaço da rede não tem história. O tempo da rede é um tempo-agora descontínuo e pontual (...) A multiplicidade de possibilidades e alternativas faz com que não tenhamos obrigação nem necessidade de nos demorarmos num lugar.” 

Por outro lado, o império da imagem, acelerado pela tecnologia digital, bombardeia conteúdos em vez de os soletrar ao ouvido, como faz a escrita, estimulando a construção de novas imagens mentais. Dizia-me há uns tempos uma criança de 9 anos: “Porque hei de ler livros se com os filmes consigo ver as personagens vivas, a mexerem-se, a falarem, ver onde se passam realmente as coisas na história?” Respondi-lhe que com os livros somos nós o realizador desse filme, que o criamos na nossa cabeça, inventando os cenários e as personagens... 

Mas o comentário da criança mostra bem como vivemos num tempo que oferece conteúdos no lugar de pensamentos. 

Adquiri há alguns anos o hábito de ler no Kindle/tablet (maior tamanho de letra, leve e fácil de transportar), mas aos poucos comecei a constatar que as histórias de ficção (com uma narrativa e um enredo que vai correndo no tempo) me surgiam na memória em retalhos, ao contrário das histórias lidas nos livros em papel, que guardava na memória de uma forma mais ligada e fluida. Inicialmente pensei que pudesse estar relacionado com a língua estrangeira (a maioria dos livros em formato digital são em inglês), mas após ler alguns livros na minha língua materna, e ficar com a mesma impressão de uma descontinuidade na história (semelhante ao que acontece quando vemos um filme aos bocados) compreendi que a questão era outra. Aos poucos fui tomando consciência de que ao ler em formato digital me sentia perdida no tempo da história, e tinha frequentemente necessidade de procurar uma referência (que aparece sob a forma da percentagem do livro lido), ao contrário do que acontece com os livros físicos cuja página que estamos a ler, inserida no espaço do livro, nos dá uma ideia física, imediata e intuitiva do tempo da narrativa...

Muitos defensores dos livros em papel referem a importância da relação sensorial com o livro (o toque, o cheiro, o manuseamento das páginas), mas parece-me igualmente importante a forma como o situarmo-nos fisicamente no espaço do livro, nos ajuda a situarmo-nos no tempo da história, e a guardar psiquicamente uma narrativa inteira e integrada.

Enquanto as crianças pequenas pensam a brincar e a desenhar, os adultos pensam a rabiscar. Mesmo os informáticos que vivem e respiram caracteres e teclados ao longo do dia, quando querem criar coisas novas rabiscam blocos de notas e fazem esquemas para pensar. Os estudantes escutam o professor na aula fazendo esquemas num caderno, alguns rabiscam desenhos... Como se o corpo estivesse diretamente ligado ao pensamento...

Para Byung a mundo da Internet, ao retirar não só o espaço, mas igualmente o corpo, interfere na construção de um tempo interno:

“O aroma é lento. Por isso não se adequa à época da pressa. Os aromas não podem suceder-se à mesma velocidade que as imagens óticas (...) A época da pressa é um tempo de visão “cinematográfica”. Acelera o mundo, transformando-o num “desfile cinematográfico das coisas” (Proust) (...) Os aromas e os cheiros entregam-se por completo ao passado, geram amplos espaços temporais. E dessa maneira instalam as bases para as primeiras recordações. Um único aroma é capaz de fazer reviver um universo da infância já dado por perdido”.

Pergunto-me que consequências terá este tempo digital acelerado e “retalhado” para as novas gerações.

“Cada vez mais vejo crianças com mais ação, e menos pensamento e curiosidade” - refere Anabela Farias, psicóloga Clínica no Centro de Desenvolvimento do Hospital Garcia da Horta há 30 anos, coordenando um grupo terapêutico de Perturbações da Relação e da Comunicação - “Aparecem cada vez mais crianças enviadas pelos pediatras com suspeita de autismo, que na realidade são perturbações da comunicação e da relação relacionadas com a falta de uma boa qualidade nas relações primárias.” E vai dando exemplos, como um menino de dois anos, que não interage, não olha o terapeuta quando este lhe dá um objeto para brincar, é incapaz de dizer uma frase de duas palavras, mas que tudo nomeia e classifica, em particular em inglês – “Dragon, Lion, Yellow” - e cuja história revela posteriormente que desde que nasceu passava 4h do dia no banco de trás do carro da mãe, enquanto esta ia e regressava do trabalho, tendo por companhia um tablet...

Da mesma forma, refere esta psicóloga, aparecem cada vez mais casos de hiperatividade, que mais do que PHDA (“Perturbação de Hiperatividade e défice de Atenção”), sofrem de uma “doença sociológica”, consequência de num mundo agitado, que híper-ocupa as crianças: “Até nas festas de anos os animadores estão sempre em ação, encadeando ativamente inúmeras atividades, para evitar tempos mortos... Como pode haver espaço para a espontaneidade, para a criatividade e construção...?”

Nestes tempos que comprimem (e suprimem) tempo e espaço, a Psicanálise parece estar fora de moda. A Psicanálise só pode existir num tempo lento e num lugar determinado... O tempo que se repete vagarosamente várias vezes por semana, num espaço (consultório) sempre igual, oferecendo assim invariantes (os dias, as horas, o espaço) que trazem o “silêncio” necessário que permite ouvir o mundo interno do paciente, e os afetos que nascem na relação terapêutica. Um tempo-presente silenciado que possibilita a escuta de um outro tempo, o passado do paciente, na forma como ficou imobilizado e presentificado no seu psiquismo.

A Psicanálise repõe a ordem do tempo na narrativa interna do paciente. Através da sua lentidão faz movimentar o trauma que permanece imobilizado num eterno presente (Scarfone) e coloca-o no tempo a que pertence - o passado -, re-construindo-se assim um verdadeiro “ontem” onde tudo aconteceu, um novo “hoje” da realidade do agora, e uma fantasia projetada de um outro “amanhã”.

Publicado no Blog da Sociedade Portuguesa de Psicanálise

Referências:

Byung-Chul Han (2016). O Aroma do Tempo – um ensaio filosófico sobre a arte da demora. Lisboa, Relógio de Água

Proust, M. (1913 - 1927) Em Busca do Tempo Perdido. Lisboa, Relógio d´Água

Scarfone, D. (2015). The time before us. (The Unpast in W. S. Merwin, W. Benjamin and V. Woolf.). Psychoanalytical Dialogues, 26(5), 513–520. 

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